Jeung Ng – O Pai do Hung Fa Yi Wing Chun
Co-autoria de Richard Loewenhagen
Traduzido do inglês por:
Sifu Alex Magnos
Hung Fa Yi Wing Chun Kuen (Boxe do Louvor à Primavera Retidão da Flor Vermelha) é uma das poucas linhagens conhecidas de Wing Chun Kuen (Boxe do Louvor à Primavera) que remontam suas origens históricas ao Monastério Shaolin (Jovem Floresta) do Sul da China no Século XVII e a seu Weng Chun Tong (Salão da Eterna Primavera), bem como à formação da King Fa Wui Gun (Associação da Bela Flor), atualmente conhecida como Associação Artística Chinesa, no começo do Século XVIII.
Hung Fa Yi era a denominação utilizada em tempos de revolução, do final do século XVII à metade do século XIX. De início, esse nome era conhecido e utilizado apenas por membros do círculo interno, até que uma versão da arte passou a ser publicamente demonstrada nos juncos da Ópera Vermelha, sob o nome Hung Syun Wing Chun Kuen (Punho do Louvor à Primavera do Junco Vermelho).
A tradição de dez gerações do Hung Fa Yi remonta a mais de 300 anos da história chinesa, enquanto a maioria das linhagens de Wing Chun traça suas origens, ou aos descendentes da Hung Syun Hei Baan (Companhia da Ópera do Junco Vermelho) ou a raízes familiares, sempre com origem no século XVIII.
Como ressaltado em artigos anteriormente escritos por representantes do Ving Tsun Museum, a formação e o desenvolvimento do Wing Chun Kuen como um sistema de treinamento de combate deu-se no Templo Shaolin do Sul, no fim do século XVII. Monges-guerreiros de Shaolin uniram-se a estrategistas militares e lutadores de altíssimo nível para moldar, com sua ciência e experiência, o Wing Chun Kung Fu.
Este artigo dá o merecido crédito a um dos responsáveis pelo desenvolvimento do Wing Chun e idealizador de seu nome nos campos de batalha – Hung Fa Yi Wing Chun Kuen. Pesquisas futuras podem revelá-lo como a mais significativa pessoa na história e no reino do Wing Chun Kuen. Seu nome era Jeung Ngh (romanizado também como Cheung Ng).
Entre os séculos XIX e XX, muitas lendas e histórias sobre as raízes históricas do Wing Chun Kuen foram criadas com base no incêndio que destruiu o Templo Shaolin do Sul e na fuga dos lendários Ng Jou (Cinco Anciões). De acordo com as tradições do Hung Fa Yi, entre aqueles que sobreviveram aos massacres impostos pelos Manchus, o sistema Wing Chun foi mantido vivo por dois conhecidos residentes do Templo Shaolin do Sul. O mais antigo, um monge, era o Grão- Mestre da vigésima segunda geração do Templo Shaolin, Yat Chahn Daaih Si (Grão-Mestre “Primeiro Pólen”). O outro, seu discípulo, Jeung Ngh, veio a formar uma sociedade secreta de cunho revolucionário ao sul da China, chamada King Fa Wui Gun. No próximo século e meio, a arte de combate por ele desenvolvida ficou conhecida como Hung Fa Yi Wing Chun Kuen.
Muitas lendas referem Jeung Ngh como o membro de uma família de militares que serviram à Dinastia Ming, até que os Manchus mataram seu parentes. Buscando refúgio e fugindo da persecução, Jeung Ngh chegou ao Templo Shaolin do Norte na segunda metade do século XVII. Ali, ele teria ouvido falar dos encontros realizados em um local chamado Hung Fa Ting (Pavilhão da Flor Vermelha), com o específico propósito de reconduzir a Dinastia Ming ao governo da China. Para unir-se a tais esforços, ele viajou para o Templo Shaolin do Sul, onde encontrou os rebeldes e o monge Yat Chahn Daaih Si, também proveniente do monastério do norte. Foi lá que ele começou os estudos da arte que viria a ser conhecida como Wing Chun Kuen.
Após a queima do Templo Shaolin do Sul, Jeung Ngh de Wuh Bak (província na China, cujo nome significa “Lago do Norte”), também conhecido como Taan Sau Ng (Ng “Mão que Dispersa”), levou sua arte para Fat Saan (cidade no Sul da China, cujo nome significa “Montanha de Buda “), na província de Guang Dong (Cantão). Para proteger sua identidade e sua ligação com o Templo Shaolin do governo Manchu, Jeung Ng organizou a King Fa Wui Gun como um disfarce para cobrir suas atividades revolucionárias e passou seu conhecimento de ópera tradicional e artes marciais para os membros da Ópera Vermelha.
Em alguns círculos, foi recentemente sugerido que o apelido de Jeung Ng – Taan Sau Ng – é homófono em relação à palavra chinesa para estropiado e que talvez isto se devesse ao fato de que ele pedia comida e dinheiro, como um mendigo. Essa suposição pode ser facilmente descartada pelas provas que sobreviveram aos séculos: tanto os registros históricos, quanto os princípios científicos dão crédito à existência de Jeung Ngh e suas contribuições para o sistema Wing Chun.
Registros históricos iniciam com numerosos apontamentos da ópera que aludem a Jeung Ngh como uma pessoa altamente respeitada por suas técnicas de ópera e militares. Nenhum mendigo conseguiria tal respeito nas extremamente sofisticadas sociedades da ópera chinesa. Os grupos cantoneses de ópera até hoje o reverenciam como um Si Jou (termo que indica os ancestrais fundadores na cultura das artes marciais) e numerosos livros sobre a história da ópera o denominam Jeung Si (Professor ou Mestre Jeung).
O Museu de Fat Saan, na China, também possui evidências históricas da vida de Jeung Ng como artista da ópera e artista marcial, não havendo qualquer referência que o aponte como mendigo. As pesquisas feitas pelo Ving Tsun Museum vão ao mesmo sentido, e os praticantes de Hung Fa Yi Wing Chun, com sua história de mais de 300 anos, sempre reconheceram Jeung Ng como o Grão-Mestre da primeira geração do Wing Chun Kuen.
Registros de ópera e museus e a tradição do Hung Fa Yi atestam em uníssono que a técnica Taan Sau (Mão que Dispersa) de Jeung Ng era incomparável no mundo das artes marciais. Usando-a, ele podia descrever toda a ciência do Hung Fa Yi Wing Chun e seu completo controle do tempo e do espaço durante o combate. Seus seguidores, atuais praticantes de Hung Fa Yi, podem realizar o mesmo feito nos dias de hoje.
O controle do tempo e do espaço é o que faz do Hung Fa Yi Wing Chun de Jeung Ng uma arte marcial diferente de todas as outras. Ele possibilita ataque e defesa simultâneos com extrema precisão. Pode-se mesmo, grosso modo, compará-lo aos atuais equipamentos de radar e sonar de alta tecnologia.
A absoluta precisão de posicionamento das linhas corporais unida ao igualmente preciso controle das distâncias do próprio corpo, permitem que o praticante use suas mãos e pés como verdadeiros detectores. Tal precisão, focada nas estratégias e táticas apropriadas para detectar falha e movimentos que ocorrem nos seis portais ou zonas de ataque e defesa, funciona como um verdadeiro radar para o praticante. Jeung Ng (e os atuais praticantes de Hung Fa Yi) podia expressar toda a complexidade da técnica de defesa e ataque simultâneos através do tempo e do espaço com o uso de uma única técnica: a mão dispersiva do Taan Sau.
No Hung Fa Yi Wing Chun Kuen, a técnica Taan Sau é treinada em um único ponto no espaço e no tempo em todos os estágios de desenvolvimento da habilidade, incluindo os exercícios de Saan Sau (mãos Separadas), Chi Sau (mãos que aderem) e treinamentos de aplicação em combater real. Se um praticante usar o Taan Sau no espaço errado, ele não estará em posição para atacar e defender simultaneamente; se ele usar o Taan Sau no tempo errado, seu oponente não se verá impedido de continuar o ataque. Apenas o Taan Sau aplicado em um específico ponto no espaço e em um específico tempo permite ao praticante atacar enquanto seu oponente não pode fazê-lo.
Mas como essa precisão é mantida no caos do combate? A resposta está em uma estrutura disciplinada, que habilita o emprego de estratégias e táticas desenvolvidas pela ênfase que o Hung Fa Yi Wing Chun dá às três dimensões do espaço e à quarta dimensão – o tempo.
No Hung Fa Yi, as discussões sobre o espaço começam com uma profunda conscientização sobre o ser. A palavra “começar” deve aqui ser realçada, já que o Hung Fa Yi Wing Chun é um sistema completo de combate. Conseqüentemente, cada aspecto da ciência do Wing Chun está relacionado a um outro aspecto. A completa compreensão do todo é impossível sem uma profunda compreensão do relacionamento simbiôntico de todas as partes atuando em harmonia. O propósito, as técnicas, as estruturas, os atributos, a energética, as táticas e as estratégias devem cooperar, todas, para que se possa empregar eficientemente o espaço e o tempo. Por exemplo, o alinhamento perfeito do corpo para cavalgar ostenta pontos de referência no espaço totalmente distintos daqueles requeridos para o alinhamento para o combate mão a mão.
Isto dito, a análise do espaço no sistema Hung Fa Yi começa com a análise da própria unidade corporal do praticante, sob a ótica do combate mão a mão. Os praticantes empregam a estrutura específica do Wing Chun para desenvolver a consciência das distâncias entre as partes de seu corpo.
Antes de qualquer tentativa de controle da massa do oponente em movimento enquanto se lhe negam o tempo e o espaço de que precisaria para reagir, o praticante deve primeiro adquirir absoluto controle sobre sua própria estrutura, em seu movimento pelo tempo e pelo espaço. Isto é chamado de “desenvolvimento da autoconsciência marcial”, e é o que habilita o praticante de Hung Fa Yi a manter seu próprio espaço enquanto entra no espaço de outrem. Em suma, seu corpo se torna um instrumento preciso, capaz de medir automaticamente as distâncias.
O desenvolvimento da autoconsciência marcial ocorre em três estágios. O primeiro envolve a aquisição do máximo de eficiência da unidade estrutural pelo alinhamento das partes do corpo, para proporcionar a melhor conjugação de equilíbrio, força e tranqüilidade em relação ao espaço tridimensional. O segundo envolve o desenvolvimento da consciência das estruturas e das falhas do oponente em relação ao espaço dele próprio. O terceiro estágio é aquele em que é introduzida a quarta dimensão – o tempo – e envolve o movimento do próprio praticante em um determinado espaço.
No primeiro estágio, o praticante examina a altura, a largura e a profundidade de seu próprio corpo, nos termos dos quatro elementos da fórmula do Hung Fa Yi Wing Chun: uma linha central (ponto de foco), duas linhas de defesa (profundidade), três pontos de referência (altura) e o conceito das cinco linhas (largura). Para definir seu próprio espaço e a localização mais precisa de suas partes, o praticante deve estar apto a descrever esse espaço em todas as dimensões. Esses quatro elementos da fórmula do Wing Chun o permitem chegar a esse ponto.
O primeiro elemento – a linha central – proporciona uma linha de referência vertical, permitindo que ele centralize os componentes de profundidade, altura e largura de seu próprio espaço. O segundo elemento – as duas linhas de defesa – mostra quanto às duas mãos do praticante devem estar afastadas de seu corpo; esse é o elemento “profundidade” de seu espaço. A altura, definida como “os três pontos de referência”, lhe dá o posicionamento vertical apropriado para alinhar cada um de seus membros. Finalmente, o conceito das cinco linhas proporciona uma precisa descrição da largura de seu espaço no plano horizontal.
Corretamente entendidos, esses quatro elementos permitem um rápido alinhamento das partes do corpo e uma ótima simplicidade, eficiência e direção em relação ao oponente, quando o movimento é introduzido.
No segundo estágio, a estrutura do oponente é examinada para que o praticante determine o seu próprio alinhamento. Os mesmos quatro elementos da fórmula do Wing Chun são usados para analisar a estrutura do oponente. As mãos e pés dele estão na distância apropriada do tronco? Os cotovelos, mãos, joelhos e pés dele estão alinhados de acordo com o conceito das linhas? Estão na altura correta, ou baixo demais? Todos esses fatores são levados em consideração, pois afetarão diretamente o controle do tempo e do espaço.
No terceiro estágio, o tempo entra em cena. Esse estágio começa quando o praticante alinha a sua estrutura com a do seu oponente. O tempo só serve como referência quando há um segundo objeto para interagir no espaço. Um bom alinhamento permite o uso simultâneo de defesa e ataque. Isto também exige que o oponente faça ajustes em sua própria estrutura antes de empregar suas próprias armas, o que dá ao praticante a vantagem do tempo. Treina-se o alinhamento da estrutura, de modo que o oponente só possa usar uma fração de seu corpo e de suas armas contra o arsenal completo do praticante. Enquanto o oponente está se ajustando em busca de um bom enquadramento, o praticante de Hung Fa Yi mantém o controle do tempo e o usa a seu favor.
Os praticantes de Hung Fa Yi treinam o reconhecimento de três ordens de tempo em relação ao combate. A primeira é chamada Fau Kiu (Ponte Flutuante) e representa uma janela temporal no espaço na qual não se tem controle do tempo nem do espaço. Em suma, nenhuma parte da fórmula do Wing Chun é expressa, quer quanto ao alinhamento, quer quanto à estrutura como um todo.
A segunda ordem examinada é chamada Saan Kiu (Pontes Separadas) e diz respeito às circunstâncias e resultados em que se tem tempo, mas não espaço, ou vice-versa. Qualquer golpe lançado nessa ordem de tempo não pode ser considerado mais do que um “golpe de sorte”, porque o praticante não pode garantir o resultado que sobrevirá.
A terceira ordem é chamada Weng Kiu (Ponte Eterna) e representa o total controle do tempo e do espaço, permitindo defesa e ataque simultâneo.
Estes conceitos de espaço e tempo em relação ao combate são fundamentais para a total compreensão e emprego do Hung Fa Yi Wing Chun. Conhecendo quais estruturas possibilitam a mais rápida determinação de “quando agir” mais eficientemente, o praticante de Hung Fa Yi está preparado para controlar o espaço e o tempo. Ele usa a fórmula do Wing Chun para reconhecer distorções do tempo e do espaço em si mesmo e em seu oponente. Ele treina para descartar suas distorções e ampliar as de seu oponente. Dotado das estratégias e táticas criadas para tirar vantagem das distorções de espaço e tempo, ele simultaneamente desabilita as armas do oponente e emprega eficientemente as suas próprias.
A habilidade de explicar estes complexos conceitos em movimento com uma única técnica, o Taan Sau, deu ao fundador do Hung Fa Yi Wing Chun, Jeung Ng, o seu apelido Taan Sau Ngh. Hoje, essa habilidade permanece viva, como recentemente demonstrado em um seminário no Ving Tsun Museum por Grão-Mestre Garrett Gee, herdeiro da 8a Geração do Hung Fa Yi. Perguntaram a Mestre Gee se havia importância quanto ao Taan Sau ser usado para deter o oponente com a mão da frente ou de trás (profundidade). Ele usou o Taan Sau para demonstrar que o uso da mão da frente impedia ataque e defesa simultâneos, pois a mão de trás se encontrava fora do campo de impacto. O tempo que se gasta para trazer a mão de trás até o campo de contato e bloquear com a mão da frente é exatamente o tempo que o oponente pode usar para reagir. Logo, é necessário considerar a questão espaço-tempo.
Então, perguntaram a Mestre Gee se havia alguma importância no fato de o Taan Sau ser alto (ponto de referência superior – dimensão da altura) ou baixo (nível do ombro – dimensão da altura). Ele respondeu que lidar com um ataque no portal superior requer que se cubra esse portal. Com o contato, pode-se fazer um ajuste. Fazer contato em baixo e tentar ajustar-se é perigoso, pois a posição não configura uma boa alavanca. Fazer o contato mais acima permite que haja uma boa alavancagem para o ajuste, com um movimento rápido no tempo e no espaço.
A última dimensão é o comprimento. Para que se possa usar ataque e defesa simultâneos, a configuração apropriada em relação à fórmula do Wing Chun resulta em aplicações de Taan Sau por dentro dos ataques do oponente.
Mestre Gee enfatizou que só há uma maneira de se usar a técnica Taan Sau quando o tempo e o espaço são considerados; uma só maneira de se viabilizar ataque e defesa simultâneos. Como seus predecessores, ele está apto a expressar o sistema inteiro através dessa única técnica. Ele e seus descendentes hoje representam à prova viva da efetividade do sistema de Jeung Ng, o Hung Fa Yi Wing Chun.